Coragem nas sombras

03/08/2025

Por: Pr. Reginaldo Cresencio

Coragem nas Sombras

A Providência de Deus em Meio à Injustiça dos Homens

Sermão: n° 3.081

Por: Pr. Reginaldo Cresencio,

Pregado no domingo à noite, 03 de agosto de 2025,

na Igreja Batista Raízes, São Carlos - SP.


Texto base: Atos 23.1–24 (NVI 2001)


Introdução:

Humanamente acreditamos que é o fim quando somos jogados na toca dos leões, na fornalha ardente, na barriga do grande peixe ou diante de um tribunal em que os acusadores e o juízes são corruptos. Mas uma coisa que aprendemos nas Sagradas Escrituras é que Deus está no controle de todas as coisas, independente das circunstâncias.

Paulo está cercado de injustiça: é julgado por homens religiosos, agredido no próprio tribunal, alvo de conspiração oculta e, ainda assim, preservado e encaminhado por Deus. A narrativa não é mera sequência de eventos, é uma exposição da providência soberana — Deus não é um espectador; Ele governa o tumulto. O que parece confusão humana é, aos olhos dEle, parte do bordado perfeito de Sua vontade. Atos 23 nos convida a ver o Senhor agindo quando tudo ao redor dá a impressão de colapso.

1. UMA CONSCIÊNCIA INTACTA DIANTE DE DEUS (vv.1–5)

"Irmãos, até hoje tenho vivido diante de Deus com consciência limpa." (Atos 23.1)

O cenário é o Sinédrio, o mais alto tribunal religioso judaico. Paulo está ali como réu, mas não assume uma postura submissa ou hesitante. Ele ergue os olhos e fala com ousadia: "Tenho vivido diante de Deus com toda a boa consciência." Não é arrogância. É integridade. Paulo não fundamenta sua defesa em reputação, títulos ou apoio político — ele apela à sua consciência, ou seja, à sua vida diante de Deus, examinada pela luz da verdade, não pela aprovação dos homens.

Essa consciência limpa não significa ausência de erros no passado. Paulo mesmo reconheceu que perseguiu a Igreja com zelo cego. Mas aqui ele mostra que sua consciência foi transformada, redimida e purificada em Cristo. Desde a sua conversão, ele vive em fidelidade à vocação recebida — sua consciência é agora moldada pela verdade do Evangelho e pelo testemunho do Espírito Santo (cf. Rm 9.1).

A reação imediata a essa declaração de pureza interior é um golpe físico. O sumo sacerdote Ananias, figura marcada historicamente por corrupção, autoriza que Paulo seja ferido na boca. O símbolo da integridade é atacado pelo símbolo da hipocrisia. É a religião sem Deus se voltando contra o homem de Deus. Paulo então responde com firmeza: "Deus te ferirá, parede branqueada!" — uma acusação que remete diretamente às palavras de Jesus contra os fariseus (Mt 23.27). Uma parede pintada por fora, mas cheia de podridão por dentro: essa é a imagem da falsa religiosidade, preocupada com a forma, mas negligente quanto ao coração.

Perceba a tensão: Paulo é chamado a respeitar a autoridade do sumo sacerdote, mas também não silencia diante do pecado. Quando informado de que ofendera a autoridade religiosa, ele responde com moderação, reconhecendo a instrução da Lei ("Não fale mal de uma autoridade do seu povo", v.5), mas não recua de sua denúncia contra a hipocrisia espiritual. Ele não alimenta rebeldia, mas tampouco colabora com a mentira.

Lições Espirituais:

1. Consciência limpa é a verdadeira segurança do crente.

Não há fortaleza mais sólida do que uma vida vivida com sinceridade diante de Deus. Quando Paulo diz que tem consciência limpa, ele está afirmando que, ao se examinar na presença de Deus, não encontra dolo, falsidade, ou vida dupla. Ele não vive para agradar homens, mas para agradar ao Senhor. Uma boa consciência é mais valiosa do que qualquer aplauso humano ou cargo eclesiástico.

2. A integridade incomoda os hipócritas.

A santidade confronta a aparência. Paulo não estava diante de um tribunal secular, mas religioso. E é justamente ali, no seio da religião institucional, que sofre agressão. Isso nos lembra que não são apenas os incrédulos que se opõem à verdade — muitas vezes os maiores opositores do Evangelho são os religiosos sem coração regenerado.

3. Ter uma consciência pura não nos isenta de oposição, pode até intensificá-la.

A fidelidade à verdade sempre desperta resistência. Como escreveu Paulo a Timóteo: "todos os que desejam viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos" (2Tm 3.12). Uma consciência limpa diante de Deus geralmente atrai olhares de desconfiança, agressões veladas e até mesmo violência direta. Mas é melhor sofrer com a alma em paz do que ser aceito com o coração corrompido.

4. O crente deve manter respeito pela autoridade, mas não se calar diante da injustiça.

Paulo, ainda que injustiçado, mantém equilíbrio. Ele corrige, denuncia e fala com firmeza, mas sem espírito rebelde. Sua postura é firme, mas reverente — ele não idolatra a autoridade, nem a despreza. Ele mostra que é possível, sim, resistir ao mal sem se tornar maligno.

Aplicação:

  • Examine sua consciência à luz da Palavra. Não se acomode com a aprovação dos homens. Pergunte-se: "Tenho vivido diante de Deus com sinceridade e reverência?"

  • Seja coerente mesmo quando a verdade custar caro. Muitos abandonam a integridade por medo da rejeição, mas Paulo nos ensina que a fidelidade é mais importante do que a segurança.

  • Prepare-se para ser mal interpretado e até agredido por causa da verdade. A resposta do mundo — e até de parte da igreja visível — à santidade genuína pode ser hostil.

  • Ensine sua família a amar a verdade mais do que a aparência. A religião dos muros caiados é abundante; que a Igreja de Cristo seja povo de integridade, moldado não pelo verniz moralista, mas pelo arrependimento profundo e pela graça vivificante de Deus.

2. DISCERNIMENTO ESTRATÉGICO NA CRISE (vv.6–10)

"Sabendo que alguns deles eram saduceus e os outros fariseus, Paulo exclamou no Sinédrio: 'Meus irmãos, sou fariseu, filho de fariseus. Estou sendo julgado por causa da minha esperança na ressurreição dos mortos." (Atos 23.6)

Ao perceber a composição do Sinédrio, Paulo age com discernimento espiritual e sabedoria. Ele não apenas identifica uma divisão doutrinária entre os grupos religiosos ali presentes — saduceus, que negavam a ressurreição, anjos e espíritos (v.8), e fariseus, que aceitavam esses fundamentos —, como também aproveita essa divergência para lançar luz sobre o cerne da controvérsia: a esperança cristã na ressurreição dos mortos.

Longe de manipulação ou oportunismo, a fala de Paulo é teologicamente honesta e evangelisticamente estratégica. Ele não apela a interesses pessoais, mas traz à tona a verdade mais ofensiva e gloriosa do Evangelho: que a morte foi vencida e que há vida eterna para todo aquele que crê em Cristo, o Ressuscitado. Dizer que estava sendo julgado por causa da ressurreição era dizer, nas entrelinhas, que tudo girava em torno de Jesus — aquele que foi morto, sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras em 1 Co 15.3-8:

3 Pois o que primeiramente lhes transmiti foi o que recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, 4 foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras, 5 e apareceu a Pedro e depois aos Doze. 6 Depois disso apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez, a maioria dos quais ainda vive, embora alguns já tenham adormecido. 7 Depois apareceu a Tiago e, então, a todos os apóstolos; 8 depois destes apareceu também a mim, como a um que nasceu fora de tempo.

A reação foi explosiva. O Sinédrio entrou em tumulto. Os fariseus, estranhamente, alinham-se em certa medida com Paulo: "Não achamos nele nada que mereça condenação", dizem no (v.9). Assim, o instrumento de julgamento torna-se, por breve momento, instrumento de proteção. A desordem impede a execução sumária que seus inimigos desejavam. Deus, na Sua providência, usa a cisão entre os ímpios para preservar o Seu servo.

Aplicações:

  • Discernimento estratégico não é carnalidade; é sabedoria em ação. Paulo não está sendo maquiavélico; ele está sendo fiel e prudente. Cristo nos ensinou a sermos "prudentes como as serpentes e simples como as pombas" (Mt 10.16). Há momentos em que o silêncio é ouro, e outros em que uma palavra bem colocada, firmada na verdade, desarma o inimigo e protege o testemunho.

  • O Evangelho precisa ser anunciado mesmo quando isso traz divisão. Muitos evitam mencionar a ressurreição por medo de escândalo ou zombaria. No entanto, a fé cristã é incompreensível sem ela. Negar a ressurreição é negar a essência da nossa esperança. Precisamos, como Paulo, expor com clareza que o julgamento que o mundo faz de nós se baseia, em última instância, na nossa fé num Cristo ressuscitado.

  • Deus age mesmo no caos. O plano de Deus não depende da harmonia das circunstâncias, mas da fidelidade dos Seus servos. Ainda que tudo pareça estar fora de controle, Deus governa. Ele é Senhor inclusive sobre os tumultos. Nenhuma perturbação escapa à sua soberania providencial (cf. Pv 21.1).

  • Nem toda vitória é calma. Às vezes, Deus nos protege por meio da confusão. O livramento de Paulo não veio por um milagre direto, mas por uma crise no tribunal. A fidelidade do cristão não depende de paz externa, mas de confiança interna — saber que Deus está no controle, mesmo quando os homens estão fora de si.

A sabedoria espiritual consiste em perceber as oportunidades dentro das tensões. Paulo discerniu, falou com intrepidez e, assim, sobreviveu para continuar sua missão. Assim também nós: em tempos de crise, sejamos fiéis, estratégicos e dependentes da soberania divina, certos de que o Deus que nos chama é o mesmo que nos preserva e nos conduz.


3. A PRESENÇA CONSOANTE: "CORAGEM!" (v.11)

"Na noite seguinte, o Senhor, pondo-se ao lado dele, disse: Coragem!" (Atos 23.11)

Paulo está cercado. O perigo não é abstrato; há uma conspiração. Porém, o Senhor não o deixa na escuridão. Ele se coloca "ao lado dele" — linguagem de presença tangível e íntima. A palavra "Coragem!" não é apenas ânimo humano, é garantia divina: o ministério de Paulo continua; ele ainda irá a Roma.

A presença de Cristo é o antídoto contra o desespero. Há momentos em que o Senhor não muda as circunstâncias imediatamente, mas muda a percepção do servo, dando força para perseverar. A promessa de ir a Roma é a confirmação de que a missão está sob controle divino. Nada pode impedir o propósito de Deus mesmo quando as portas parecem fechadas.

Após os embates com o Sinédrio e o clima de tensão crescente, Paulo se encontra cercado, isolado e sob ameaça concreta — não apenas rumores ou hostilidades verbais, mas uma conspiração real tramada contra sua vida. O cenário é sombrio, e a solidão do cárcere poderia facilmente se tornar um terreno fértil para o desânimo. No entanto, é precisamente nesse contexto de vulnerabilidade que se manifesta uma das mais doces intervenções da graça: o Senhor se põe "ao lado dele".

A linguagem usada por Lucas é rica e profundamente consoladora. Cristo não envia um anjo, não apenas inspira Paulo com pensamentos de ânimo; Ele próprio se faz presente. Esta é uma aparição pessoal, íntima, silenciosa e poderosa. O verbo grego usado para "pôs-se ao lado" (Ἐπιστὰς αὐτῷ - ἐφίστημι - ephistēmi) indica proximidade real — Cristo se coloca como escudo, como companheiro, como sustentador invisível, porém inegável. É a mesma presença que acompanhou os três hebreus na fornalha (Dn 3.25), a mesma que prometeu nunca nos deixar nem nos abandonar (Hb 13.5).

A palavra que Jesus profere — "Coragem!" (em grego, θαρσέi - tharsei)— é mais do que uma exortação psicológica. É uma palavra carregada de autoridade divina. O mesmo termo foi usado por Jesus

ao curar o paralítico (Mt 9.2) "2 Alguns homens trouxeram-lhe um paralítico, deitado em sua maca. Vendo a fé que eles tinham, Jesus disse ao paralítico: "Tenha bom ânimo, filho; os seus pecados estão perdoados";

à mulher com fluxo de sangue (Mt 9.22) "22 Voltando-se, Jesus a viu e disse: "Ânimo, filha, a sua fé a curou!" E desde aquele instante a mulher ficou curada;

e aos discípulos no meio da tempestade (Jo 16.33). "33 "Eu lhes disse essas coisas para que em mim vocês tenham paz. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo"

É uma palavra que transforma ambientes, eleva o espírito e dá vigor à alma cansada. Em outras palavras, Jesus está dizendo a Paulo: "Você ainda não terminou. Eu estou aqui. A sua missão continua. Roma ainda o aguarda."

Cristo não promete a Paulo um livramento imediato das dificuldades, mas assegura algo ainda mais precioso: a continuidade do propósito divino em sua vida. Isso redefine completamente o que significa estar seguro. A segurança não está na ausência de perigos, mas na certeza da presença de Deus e na confiança de que nenhum fio de cabelo cairá sem a permissão do Pai (Mt 10.30).

Há momentos na vida cristã em que a alma geme e as circunstâncias parecem impenetráveis. É nessa hora que a presença de Cristo se faz mais real para aqueles que o conhecem. Ele não nos abandona nas madrugadas escuras da alma. Mesmo que tudo pareça perdido aos olhos humanos, a missão continua porque o Senhor está ao lado. Essa é a fonte da coragem: não o otimismo ilusório, mas a confiança firme de que aquele que começou a boa obra é fiel para completá-la (Fp 1.6).

Quando tudo falha, a presença de Cristo sustenta. Quando os homens conspiram, Deus sussurra: "Coragem". Quando o caminho parece terminar, Ele diz: "Ainda não acabou. Eu irei com você até Roma."

4. A PROVIDÊNCIA DEUS UTILIZA INSTRUMENTOS IMPROVÁVEIS (vv.12–24)

"Mais de quarenta judeus juraram não comer nem beber até matarem Paulo."

(Atos 23.12–14)

O que temos aqui é mais do que uma conspiração humana; trata-se de um conflito entre a aliança da graça e os intentos da rebelião. O apóstolo Paulo torna-se alvo de uma conspiração diabólica articulada por homens que, sob pretexto de zelo religioso, revelam corações tomados por ódio. Mais de quarenta conspiradores juram solenemente que jejuarão até ver o apóstolo morto. Não era uma questão de debate teológico, mas de assassinato premeditado, envolto em linguagem de piedade.

Contudo, a soberania de Deus jamais é ameaçada pelos projetos humanos, ainda que estes pareçam articulados com rigor e sejam numerosos em número. O Senhor, que reina soberanamente sobre reis e mendigos, sobre sinédrios e soldados, começa a agir em silêncio. O cenário é escuro, mas os fios invisíveis da providência divina já estão sendo entrelaçados.

Deus escolhe um instrumento improvável — um jovem, sobrinho de Paulo, que sequer tem o nome registrado na narrativa. Um personagem sem destaque aparente, um "desconhecido" aos olhos da história, mas não aos olhos do Senhor. Ele ouve os planos dos conspiradores, é movido a agir, vai até o quartel e relata tudo a Paulo. Este, por sua vez, apela ao centurião, e em poucas horas, o impensável acontece: Paulo é escoltado por duzentos soldados, setenta cavaleiros e duzentos lanceiros — uma força militar de 470 homens — até a segurança de Cesareia. O que começou como uma tentativa de emboscada termina com um exército romano protegendo o servo de Cristo.

Essa sequência de eventos revela a delicadeza e a profundidade da providência divina. Deus governa o universo não apenas pelos grandes milagres, mas também pelos pequenos movimentos imperceptíveis da vida cotidiana. A providência, muitas vezes, caminha em passos silenciosos. Ela não precisa de trovões nem terremotos; às vezes, se manifesta na escuta de um menino, na responsabilidade de um oficial romano, ou na pontualidade de uma carta.

É assim que o Senhor trabalha — utilizando instrumentos improváveis, frágeis aos olhos humanos, mas poderosos nas mãos do Altíssimo. Como diz João Calvino:

"Deus, ao conduzir seus filhos, usa até mesmo os ímpios como instrumentos de sua providência, ainda que eles não tenham nenhuma intenção de obedecê-lo."

O crente, portanto, pode descansar. Mesmo quando cercado por ameaças, mesmo quando os ímpios tramam nas sombras, Deus está no controle. O Senhor não apenas vê, mas age. Ele escreve a história usando até mesmo os rabiscos dos homens. O fiel não precisa compreender todas as linhas do enredo; basta-lhe saber que há um Autor sábio e soberano conduzindo o script da redenção. Nada escapa do seu cuidado, e nada — absolutamente nada — pode frustrar os Seus desígnios.


Conclusão

Atos 23 nos expõe a realidade de um Deus que:

  1. Vê e aprova a vida de quem anda em integridade (consciência limpa). Permanecer com boa consciência. A igreja precisa examinar-se constantemente, confessando, renovando a integridade diante de Deus.

  1. Dá sabedoria e timing para que a verdade seja manifestada mesmo em meio ao conflito. Buscar sabedoria de cima. Não é suficiente ter a verdade; é preciso saber usá-la com discernimento.

  1. Viver na confiança da presença de Cristo. Em aflições, o "Coragem!" de Deus é a âncora que sustenta. O Senhor Acompanha pessoalmente Seus servos com presença e promessa. Deus Orquestra os detalhes de conspirações humanas para cumprir Sua vontade.

  1. Reconhecer os instrumentos de Deus. Não despreze o jovem anônimo, o irmão simples; Deus age com meios humildes.

  1. Descansar no governo soberano. A história não está fora de controle. Mesmo nas injustiças, Ele tece o bem.

Oração Final

Senhor Deus, que és o mesmo ontem, hoje e eternamente, concede-nos a coragem de Paulo, a integridade de sua consciência, o discernimento nas crises, a paz de sentir Tua presença e a confiança inabalável em Tua providência. Que, como Ele, não nos amedrontemos diante da injustiça, mas firmes proclamemos o Evangelho, certos de que Tu estás conosco e que Tua vontade prevalecerá. Em nome de Jesus, amém.