O Evangelho de Deus: a mensagem, o mensageiro e a missão

Sermão: n° 3.111
Por: Pr. Reginaldo Cresencio,
Pregado no domingo à noite, 19 de outubro de 2025,
na Igreja Batista Raízes, São Carlos - SP.
Texto: Romanos 1.1–15
¹ Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus, ² o qual foi prometido por ele de antemão por meio dos seus profetas nas Escrituras Sagradas, ³ acerca de seu Filho, que, como homem, era descendente de Davi, ⁴ e que mediante o Espírito de santidade foi declarado Filho de Deus com poder, pela sua ressurreição dentre os mortos: Jesus Cristo, nosso Senhor.
⁵ Por meio dele e por causa do seu nome, recebemos graça e apostolado para chamar dentre todas as nações um povo para a obediência que vem pela fé.
⁶ E vocês também estão entre os chamados para pertencerem a Jesus Cristo.
⁷ A todos os que em Roma são amados de Deus e chamados para serem santos: A vocês, graça e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo.
⁸ Antes de tudo, sou grato a meu Deus, mediante Jesus Cristo, por todos vocês, porque em todo o mundo está sendo anunciada a fé que vocês têm.
⁹ Deus, a quem sirvo de todo o coração pregando o evangelho de seu Filho, é minha testemunha de como sempre me lembro de vocês ¹⁰ em minhas orações; e peço que agora, finalmente, pela vontade de Deus, seja-me aberto o caminho para que eu possa visitá-los.
¹¹ Anseio vê-los, a fim de compartilhar com vocês algum dom espiritual, para fortalecê-los, ¹² isto é, para que eu e vocês sejamos mutuamente encorajados pela fé.
¹³ Quero que vocês saibam, irmãos, que muitas vezes planejei visitá-los, mas fui impedido de fazê-lo até agora. Meu propósito é colher algum fruto entre vocês, assim como tenho colhido entre os demais gentios.
¹⁴ Sou devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes.
¹⁵ Por isso estou disposto a pregar o evangelho também a vocês que estão em Roma.
1. Introdução
A carta aos Romanos é, nas palavras de Martyn Lloyd-Jones, não um tratado teológico, mas uma carta escrita a uma igreja, e, como toda literatura neotestamentária, tinha em vista um objetivo e um fim práticos: ajudar os cristãos de Roma, edificando-os e firmando-os em sua fé.
No entanto, tornou-se o manifesto da fé cristã, o alicerce sobre o qual a Reforma foi erguida e o coração que pulsa no centro da teologia paulina.
Ao abrir esta carta, percebemos que Paulo não começa com homens, mas com Deus; não com problemas humanos, mas com a glória divina. Ele inicia com o Evangelho de Deus — não o Evangelho sobre Deus, mas o Evangelho que pertence a Deus, que procede de Deus, que revela Deus.
E isso é profundamente contracultural. Num tempo em que o homem é o centro de tudo, Paulo desloca o foco: Deus é o autor, Cristo é o conteúdo, o Espírito é o aplicador e o homem é o beneficiário.
Hoje, como nos dias de Paulo, a igreja precisa voltar a essa verdade: somente o Evangelho de Deus pode transformar indivíduos, famílias, igrejas e nações. E essa transformação começa quando compreendemos quem é o mensageiro, qual é a mensagem e qual é a missão.
O mensageiro do Evangelho
"Paulo, servo de Jesus Cristo..." v.1
Essa Epístola é escrita por um homem chamado Paulo, e ele está escrevendo para um grupo de cristãos da grande cidade de Roma, a metrópole do mundo daquele tempo, a uma igreja composta em sua maioria por gentios. E isso por si só, já é espantoso, pois quem conhece a história desse homem sabe que anteriormente Paulo era um judeu austero, fanático, nacionalista, que odiava o Senhor Jesus Cristo e a Igreja Cristã. Que dirigindo-se para Damasco com o objetivo de exterminar a pequena igreja daquela cidade, teve um encontro com o Senhor ressurreto, e desde então teve sua vida totalmente transformada, passando de perseguidor da igreja para defensor da fé e apóstolo para os gentios.
É importante destacar que, ele era hebreu de hebreus, da tribo de Benjamim, educado como fariseu; teve o privilégio de sentar-se aos pés de Gamaliel, o maior mestre dentre os fariseus, e ali, sob aquele ensino especializado e competente, ele mesmo se tornou um especialista na lei judaica. Se você nos acompanhou através da série de sermões em Atos dos Apóstolos, lembrará que Paulo também era cidadão romano de nascimento (Atos 21.39). Outro fato importante foi ter sido criado numa cidade chamada Tarso, que era um dos principais centros de cultura, como as famosas Atenas, na Grécia, e Alexandria, no Egito. Ele conhecia poetas e filósofos gregos. Com toda certeza, Paulo foi um grande erudito de sua época.
No entanto, Paulo se apresenta como Paulos doulos Christou Iēsou — "Paulo, servo de Jesus Cristo".
O termo doulos (δοῦλος) não significa apenas "servo", mas "escravo" — alguém que não possui vontade própria, cuja vida pertence inteiramente ao seu Senhor.
Paulo, como cidadão romano escrevendo a uma igreja situada no coração do Império, onde havia cerca de sessenta milhões de escravos, faz uma declaração surpreendente e contracultural ao apresentar-se como doulos de Cristo. Num contexto em que ser cidadão romano representava liberdade, status e poder, ele se autodenomina escravo, não de César, mas de Jesus Cristo.
Essa introdução não é mero detalhe formal; é uma profunda afirmação teológica e espiritual. Ao iniciar sua carta dessa maneira, Paulo ensina que todo verdadeiro ministério nasce da submissão. Antes de ser apóstolo, ele é servo; antes de ser líder, ele é propriedade de Cristo.
Sua autoidentificação é radical e transformadora: o fariseu orgulhoso tornou-se escravo do Cristo crucificado. Nessa inversão gloriosa, o orgulho cedeu lugar à obediência, e o mérito humano, à graça divina. Aqui está o fundamento da vida cristã, não somos senhores da obra, somos servos do Senhor da obra.
Em seguida, Paulo afirma ser "chamado para ser apóstolo" (klētos apostolos). O chamado não é uma escolha humana, mas um ato soberano de Deus.
Paulo nunca se considerou um homem que decidiu ser apóstolo, mas alguém arrancado da estrada de Damasco pela mão do próprio Cristo.
Toda vocação verdadeira é uma interrupção divina na história pessoal do homem.
E Paulo diz ainda que foi "separado para o Evangelho de Deus"
O verbo aphorizō significa "colocar uma cerca em volta" — separar com propósito. Antes ele fora separado como fariseu (Fp 3.5), mas agora é separado para Cristo.
Todo cristão, de certa forma, é um homem separado, retirado do mundo para pertencer exclusivamente a Deus.
A Mensagem do Evangelho de Deus:
a promessa cumprida em Cristo (vv.2–4)
"O qual foi por Deus outrora prometido por intermédio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras, acerca de seu Filho..."
O Evangelho não é uma invenção de Paulo, nem um novo sistema religioso. É a realização das promessas de Deus.
Desde Gênesis 3.15, o Senhor havia prometido
um Redentor, e em Cristo essa promessa se cumpre. Lloyd-Jones sublinha que "o
Evangelho é tão antigo quanto o próprio pecado — é o plano eterno de Deus
revelado progressivamente na história".
Por isso Paulo o chama de "Evangelho de Deus" — é Dele em origem,
essência e finalidade.
Cristo é o centro:
- "Nascido da descendência de Davi segundo a carne" — sua humanidade verdadeira e sua realeza messiânica.
- "Declarado Filho de Deus com poder, segundo o Espírito de santidade, pela ressurreição dentre os mortos" — sua divindade e triunfo.
O verbo grego declarado, (v.4) vem de horizō (de onde vem a palavra em português "horizonte") e significa "definir, demarcar".
A ressurreição foi o marco visível que definiu aos olhos do mundo que Jesus é o Filho eterno de Deus, o Messias prometido, o Senhor da vida e da morte.
O Evangelho não é apenas sobre a cruz, é sobre
a cruz e a ressurreição. Cristo morreu por nossos pecados, mas ressuscitou para
nossa justificação.
Sem a ressurreição, não há Evangelho, apenas tragédia; mas com ela, temos
vitória, certeza e poder.
A Missão do Evangelho:
fé obediente para glória de Cristo (vv.5–7)
"⁵ Por meio dele e por causa do seu nome, recebemos graça e apostolado para chamar dentre todas as nações um povo para a obediência que vem pela fé."
A expressão "obediência que vem pela fé" não indica duas coisas distintas, mas uma só realidade: fé obediente.
A verdadeira fé é viva, atuante, transformadora. Ela gera santidade. Fé que não produz obediência não é fé, é apenas mera opinião religiosa. A graça que salva é a mesma que santifica.
O propósito é por amor do seu nome. Toda a missão, toda a obediência, toda a vida cristã existe para a glória do nome de Cristo. O Evangelho é teocêntrico, não antropocêntrico.
Paulo escreve a uma igreja já existente em Roma — formada por judeus e gentios, e os chama de "amados de Deus, chamados para ser santos".
O Evangelho não apenas nos salva, ele nos
separa para Deus.
A santidade não é um acessório da fé, é sua consequência inevitável.
O coração pastoral e missionário de Paulo vv.8–15
Nos versículos seguintes, vemos a alma de um
pastor. Antes de ensinar, Paulo agradece a Deus (v.8), ora pelos
irmãos (v.9–10) e deseja estar com eles (v.11).
O apóstolo dos gentios é também um homem de afetos santos.
Ele quer visitá-los, "compartilhar com vocês algum dom espiritual, para fortalecê-los," e "para que juntos sejamos encorajados pela fé".
Paulo confessa: "Sou devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes" (v.14).
O verbo opheiletēs eimi expressa uma dívida moral, não financeira. Paulo se sente devedor porque recebeu algo infinitamente valioso, o Evangelho, e, portanto, tem a obrigação de compartilhá-lo com todos.
Ele é impulsionado por um senso de urgência espiritual. O Evangelho não é algo para guardar, mas para proclamar. Ele deseja "colher algum fruto" (v.13), isto é, ver conversões, crescimento, consolação, avanço do Reino.
O Evangelho é de Deus, sobre Cristo, pelo Espírito
A teologia de Romanos 1.1-15 é a semente de
toda a carta.
Três pilares se erguem neste texto:
- O Evangelho é de Deus — Ele é o autor, a fonte e o propósito.
- O Pai planejou, o Filho realizou, o Espírito aplicou.
- A salvação é, do início ao fim, obra divina.
- O Evangelho é sobre Cristo — Ele é o conteúdo da mensagem.
- Não pregamos moralidade, mas uma pessoa: Jesus Cristo, o Filho de Deus.
- O Evangelho não é o que o homem deve fazer, mas o que Deus já fez em Cristo.
- O Evangelho é aplicado pelo Espírito — Ele convence, regenera e sustenta.
- O "Espírito de santidade" (v.4) é o mesmo que ressuscitou Jesus e habita em nós.
- Sem o Espírito, o Evangelho é apenas letra; com Ele, é poder de Deus para salvação.
A Epístola aos Romanos e seu papel na história da igreja
- Agostinho, ele era um homem brilhante, excelente filósofo, todavia, sua vida era imoral, dissoluta até o momento de sua conversão.
No dia de sua conversão ele estava aflito e com a alma em agonia, estava sentado num jardim no final de uma tarde, quando ouviu a voz de uma criança dizendo: "tolle, lege". "Tome e leia". Levantou-se e foi para seu quarto e abriu a Bíblia, e leu Romanos 13:
¹³ Comportemo-nos com decência, como quem age à luz do dia, não em orgias e bebedeiras, não em imoralidade sexual e depravação, não em desavença e inveja.
¹⁴ Pelo contrário, revistam-se do Senhor Jesus Cristo, e não fiquem premeditando como satisfazer os desejos da carne.
Agostinho foi fundamental no combate da heresia propagada por Pelágio. Agostinho refutou o ensino de Pelágio simplesmente expondo a Epístola aos Romanos.
- Lutero, em 1515, quando ainda era católico romano, na época que que era professor de teologia, resolveu dar aulas aos seus alunos sobre essa Epístola, e lendo Romanos, redescobriu que "o justo viverá pela fé", e o mundo nunca mais foi o mesmo.
- John Bunyan, pastor batista que ficou conhecido por sua obra O Peregrino, também foi convertido lendo a Epístola aos romanos juntamente com a leitura de Gálatas.
- John Wesley: O mesmo aconteceu no relato de sua conversão. E o mesmo aconteceu com muitos mais...
Aplicações Práticas
- Viva como doulos de Cristo: submeta toda vontade ao Senhorio de Jesus.
- Examine se sua fé produz obediência e frutos dignos do Evangelho.
- Faça do lar um campo missionário. Ore, leia, ensine e viva o Evangelho no cotidiano.
- Lembre-se: o primeiro púlpito do cristão é a mesa da sua casa.
- Que a Igreja Batista Raízes seja uma comunidade centrada em Deus e saturada pelo Evangelho, onde a teologia se transforma em adoração e serviço.
- Como Paulo, sintamo-nos devedores do Evangelho.
- Não por culpa, mas por gratidão, quem recebeu graça não pode permanecer em silêncio.
Conclusão
O Evangelho que transformou Paulo é o mesmo
que transforma hoje.
Ele não é uma filosofia, é poder; não é conselho, é redenção; não
é opção, é vida.
Assim como Paulo, fomos chamados, separados e
enviados.
Que nossa igreja, nossas famílias e nossos corações ardam novamente pela glória
do Evangelho.
Não há maior honra do que ser servo de Cristo e proclamador de Seu Evangelho.
Cristo é o eixo de todo o texto e de toda a vida cristã. Ele é o servo perfeito, o enviado do Pai, o separado desde a eternidade, o Filho de Davi e Filho de Deus, o ressurreto que hoje reina e intercede por nós.
O Evangelho de Deus é o Evangelho de Cristo — porque Deus se revelou em Cristo, se entregou em Cristo e reina por meio de Cristo.
Oração
Senhor nosso Deus e Pai, Tu és o autor do Evangelho, o Pai de misericórdias e o Deus de toda graça.
Obrigado porque, em Cristo, cumpriste Tuas promessas e revelaste o Teu amor eterno.
Faze-nos servos fiéis, missionários da
esperança, devedores da graça.
Que sejamos uma igreja separada para o Evangelho, obediente na fé, ardente na
missão e santa no viver.
Dá-nos, Senhor, a mesma paixão de Paulo, para que Cristo seja conhecido, amado e exaltado em toda a terra. Em nome do Teu Filho, o Senhor Jesus Cristo. Amém.
